terça-feira, 15 de setembro de 2020

Doação de dados: você está preparado para essa conversa?


Existe um grande debate em torno do monopólio dos gigantes (Big Techs) da plataforma digital que conhecemos como WWW ou Web. Oferecendo produtos e serviços que atendem muito bem as necessidades das pessoas, essas empresas conquistam e concentram o mercado. Definido como uma situação particular de concorrência imperfeita, o monopólio não surge apenas da coerção, feita por governos através de leis que visam proteger um único agente. Existem setores que apresentam uma barreira de entrada natural tão grande, que geram monopólios espontâneos. Também tem aquele caso onde os concorrentes apresentam produtos e serviços tão diferentes, que de fato não fazem concorrência uns com os outros e formam a concorrência monopolística.

Então? Em qual desses casos de monopólio se encaixam as Big Tech? Nenhum. Alphabet (Google), Facebook, Apple, Microsoft e Amazon, não são beneficiadas por nenhuma reserva de mercado. Todas essas empresas têm concorrentes. Podemos pensar numa concorrência monopolística? Strava, por exemplo, é uma rede social que oferece a oportunidade de conhecer e interagir com praticantes de esportes do mundo inteiro. Um produto excepcional que, no entanto, não oferece concorrência ao Facebook. Usuários do Facebook não querem saber se seu “treino está pago”, e o Facebook não oferece ao atleta o que Strava oferece. O mesmo acontece com Facebook e Linkedin. Temos contas em diversas redes sociais porque, embora parecidas (perfil, posts, feed, like, comentários, amigos, etc), elas são substancialmente diferentes. A barreira de entrada para esses negócios é baixíssima! Quem nunca ouviu dizer “começou numa garagem”? Por que, embora tenha concorrentes, o público se concentra em uma ou outra plataforma?

O monopólio das Big Tech tem suas peculiaridades.Você pode comprar roupas numa loja com mais alguns milhares de desconhecidos enquanto seus amigos se espalham comprando em centenas de lojas que você nem sabe que existem. Tá tudo bem. No entanto, ninguém quer ficar numa rede social onde os amigos, ou aqueles com quem se deseja se relacionar, não estejam. Também não queremos comprar onde existam poucas avaliações e recomendações. Além de oferecerem boas soluções para seus usuários, os produtos das Big Tech se beneficiam do atributo REDE. Nós nos aglomeramos voluntariamente em torno delas e involuntariamente somos agentes dessa concentração. Tente imaginar o que aconteceria se a gente conseguisse deletar todas as redes sociais tipo Facebook, e começar de novo, com centenas de pequenos concorrentes, todos oferecendo serviços absolutamente iguais, numa concorrência perfeita! (Por favor, não deixe de me mandar comentários dizendo o que você acha que aconteceria!).

Outra peculiaridade dos monopólios digitais é que eles não são temidos por porque têm poder e controle sobre o mercado. Eles são temidos porque têm poder e controle sobre os dados. Talvez acabe sendo a mesma coisa porque o mercado das Big Techs na verdade, são os dados... 

Dito tudo isso, podemos afirmar que temos uma boa visão sobre problema do monopólio das Big Tech. Por que não conseguimos enfrentá-los? Porque, embora estejamos vendo bem, não estamos enxergando direito. Só existe uma maneira de regular a concentração de poder que tanto tememos: a velha, temida e injustiçada abordagem dos dados abertos.

Toda empresa que coleta dados, tem a obrigação de dar a governança e o direito de utilizá-los (tudo previsto em acordos sociais conhecidos). A cessão dos direitos de uso é condicional, portanto temporária. Só quem tem direitos permanentes sobre o uso dos dados, são os agentes de onde eles foram extraídos. Em palavras simples, seus dados, sobre você, seus hábitos, ações e relações (seus “não dados” inclusive), pertencem a você e a você é assegurado o direito de fazer o que quiser com eles. Você vai me perguntar: se eu posso fazer o que eu quiser com eles, por que não posso impedir que essas empresas usem meus dados? Porque você assinou um contrato quando começou a usar os serviços dela: serviço de graça (ou por um valor X) e, em troca, todos os seus dados poderão ser usados “na melhoria dos serviços prestados”. Não é só isso. A empresa disse também pra você não se preocupar porque ela não vai “compartilhar seus dados com ninguém”. Pronto. Você cedeu os dados, aceitou que fossem usados e garantiu o monopólio de uso para essa empresa.

E agora? Agora você exerce o poder de fato (você já tem por direito) e torna-se um doador de dados. Voluntariamente, declare que seus dados devem ficar disponíveis para que uma plataforma de dados pública1 os colete e disponibilize a serviço da inovação. Não, isso ainda não existe, mas deveria existir. 

Uma plataforma pública de dados seria um lugar onde os dados proprietários voluntariamente cedidos, ficariam disponíveis e acessíveis para todos2. Há muito o que se pensar para um modelo de negócio desse tipo, até porque existem parâmetros e inspirações para ele, mas não precedentes. Poderia se exigir, por exemplo, que aqueles que desejem usar os dados dessa plataforma pública, sejam doadores de dados. Pode-se exigir das plataformas sociais privadas que anonimizem os dados e disponibilizem, através de APIs, aqueles que fossem doados pelos seus verdadeiros proprietários.

Permita-se um tempo para pensar na ideia. Com o tempo você vai entender e aceitar que dados compartilhados estão muito mais protegidos do que dados aprisionados. O seus dados já são usados de qualquer maneira, mas estão gerando valor exclusivamente para um agente desse ecossistema.

Dados digitais são imprescindíveis para a visualização e abordagem de problemas complexos. Sabe o que são problemas complexos? Aqueles com uma infinidade de causas, correlacionados com outra infinidade de fenômenos e que, para completar, são dinâmicos por natureza. Um problema complexo nunca acorda do mesmo jeito que dormiu, porque a rede que o sustenta é formada por agentes vivos, autônomos, que fazem escolhas e emitem informações o tempo todo. Exemplos? Violência. Educação. Pandemia. Terrorismo. Pobreza. Todos esses problemas são complexos e por definição não possuem soluções. O máximo que conseguimos fazer com problemas complexos, é controlá-los o tempo todo e para sempre.

Todo mundo conhece a fórmula de sucesso do controle de algo: conhecer. Quanto mais informações temos sobre um problema, melhores as chances de controlá-lo. É preciso mapear e gerenciar, o tempo todo e para sempre, o máximo de informações possiveis. Sabe onde estão os dados que podem ajudar nesse processo? Em mãos privadas. Precisamos de acordos sociais que garantam o acesso coletivo a dados coletados de indivíduos. Essa necessidade é tão humana e tão premente, que podemos apostar que uma solução desse tipo, certamente está a caminho. Claro que uma boa regulamentação para proteção de privacidade se aplicará à uma plataforma pública. Se você confia em um acordo social feito com uma empresa para a proteção de seus dados, não tem porque não acreditar que o mesmo acordo pode ser feito para uma plataforma pública . Se não confia, melhor excluir todas as suas contas do Google, Amazon, Facebook, Linkedin, Apple, Microsoft e etc.

Existem várias maneiras de fazer uma plataforma pública de dados digitais doados tornar-se um excelente modelo de negócio para todos os envolvidos (stakeholders, se você preferir). Se a gente abraçar a ideia, as soluções chegam.

Você já doa seu tempo como voluntário em uma causa que defende, mesmo que seja apenas escrevendo um texto e publicando ou debatendo nas redes sociais. Talvez até doe dinheiro. Muitos são doadores de sangue e órgãos. Doamos o que temos sobrando e não nos faz falta, e mesmo que faça, é muito pouco em comparação com o benefício que pode gerar na causa que recebe. A próxima vez que pensar em doar algo para uma causa nobre, considere a doação de dados.

Você está preparado para essa conversa?


1 Pública não é sinônimo de estatal
2 Aí também poderiam ficar os dados abertos por default (os chamados dados públicos, que já são abertos por natureza), mas para esses ao menos já existem acordos sociais para compartilhamento.

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Então a Espanha será a campeã do mundo


Gosta de futebol? Gosta de Copa do Mundo? Gosta de big data? Você pode gostar disso também: o jornal Financial Times analisou alguns dados para apontar o melhor time desse mundial (France, Germany, Brazil, Spain: who has the best World Cup squad?). Como você deve ler essa matéria?

Lembre-se que DADOS NÃO FALAM! Se você pegar um data set, mesmo que completo, limpo, estruturado, todo bonitinho, ainda assim ele não falará nada. Falar é comunicar e para isso é preciso haver uma mensagem. Toda mensagem é fruto de um somatório de vieses e isso é inevitável! Isso quer dizer que, com o mesmo dataset, diferentes analistas entregariam diferentes informações.

Um viés já aparece quando se formula a pergunta, mas vamos imaginar que a pergunta seja a mesma para todos, portanto que não houve escolha nessa etapa. A pergunta que o FT se fez foi: Que país tem o melhor time na Copa?
O que significa ter o melhor time da Copa? Não há consenso sobre isso. O FT optou por considerar o “somatório” da qualidade e experiência dos jogadores. Uau! Aqui já temos um grande viés! E vai piorar! Esse processo de definir o que responde à pergunta feita, chamamos de DATAFICAÇÃO. Você nem percebe, mas nesse momento esta´definindo que dados responderão à sua pergunta.

E agora vamos enviesar mais. Vamos montar o algoritmo: o que é qualidade e experiência? Para o FT, qualidade é ter jogado nos times melhores. Experiência é a soma dos minutos jogados em competições de elite. Para não complicar muito, nem vou entrar no detalhe de que ‘melhores times’ e ‘competições de elite’, já são um poço de vieses!

Pronto. Agora sim alguém falou alguma coisa (e não foram os dados, heim?): A Espanha tem o melhor time. Seguido pela Alemanha, França e Brasil. A Itália ficou bem perto, mas nem se classificou para a Copa... No final das contas, o melhor time mesmo será o que levar a taçã para casa! A conferir!

Não existe certo ou errado nas escolha de um processo analítico. Só temos que saber que são escolhas e quais foram elas (tudo a ver com a discussão sobre transparência de algoritmos). Nas escolhas do FT foram desconsiderados quantas Copas o país participou, quantos minutos os jogadores jogaram juntos, o histórico do técnico e muitos outros atributos importantes e às vezes não relacionados com futebol. Mas, escolhas são escolhas e eles deixaram as deles bem claras!

Agora um detalhe final: uma parte muito importante da mensagem data driven é como você entrega o resultado da sua analítica, processo mais conhecido como VISUALIZAÇÃO DE DADOS (nome bem equivocado, mas deixa assim...) Diga aí, o que você achou dessa? Uma boa visualização de dados mostra claramente a sua resposta para a pergunta feita. Se alguém precisar tomar uma decisão baseada nisso, que seja rápida e inequívoca. Se entregar essa analítica para um bom designer especializado em visualização de dados, o FT consegue coisa bem melhor!

Para descontrair: boa visualização de dados mesmo está no mapa que o jornal espanhol usa para falar da previsão do tempo no país. Numa feliz sacada o FT comenta: a Espanha ignora solenemente Portugal, e não somente no esporte! As duas seleçoes estreiam hoje se enfrentando. Imperdível!

OBS: Todas as fotos são da matéria do FT

sábado, 19 de maio de 2018

Fralda inteligente avisa: download concluído e é número 2

Qualquer tomada de decisão (qualquer mesmo), tem o seu ecossistema big data completinho

A Verily Life Sciences, empresa do grupo Alphabet (Google), registrou a patente de uma fralda com sensores que identificam não apenas quando a fralda precisa ser trocada, mas também informa se o bebê fez xixi ou cocô. O "tomador de decisão" recebe uma notificação no app do celular. Algo como: "Dowload concluído: é número 2"

Não preciso dizer que o dispositivo também registra dia/hora dos “eventos”.

Por enquanto a smart diaper é apenas uma patente registrada de um produto que não sabemos se será lançado ou adotado. O que importa é perceber que as inovações data driven têm um caminho de desenvolvimento: 
1. Escolher um problema qualquer (Qualquer mesmo!!! Por isso esse exemplo é tão perfeito!!!)
2. Identificar quem toma decisões sobre esse problema
3. Identificar que informações esse tomador de decisão precisa e quando
4. Dataficar o problema: escrever o problema em termos de dados
5. Definir a tecnologia que pode transformar as informações do mundo físico em dados digitais
6. Fazer um algoritmo que transforme esses dados na informação que o tomador de decisão precisa 
7. Definir como, onde e quando entregar as informações ao tomador de decisão
8. Guardar todos os dados e logo, logo começar a criar um monte de insights e serviços a partir deles

Chamamos esse processo de Gestão estratégica do Ecosssitema Big Data. Tudo isso foi transformado em uma metodologia conhecida como Big Data Estratégico1

O que foi descrito acima é um resumo genérico para quem está começando a gostar do assunto. Para o sucesso de um projeto em big data, muitas outras coisas precisam ser observadas. Por exemplo:

- Sobre o item 2: Nem sempre quem toma a decisão, age sobre o problema! Fique ligado! Às vezes você tem que projetar para duas entidades diferentes!

- Sobre o item 4: A ciência das redes oferece ferramentas incríveis para dataficar problemas complexos!

- Sobre o item 5: Nem sempre é preciso coletar novos dados. Um bom estrategista de dados sabe onde e como conseguir dados que já foram coletados para outros fins, mas interessam ao seu projeto

- Sobre o tem 7: A tomada de decisão pode ser automatizada, a partir de parâmetros pré-definidos. A ação sobre o problema também! Aí entram os robôs!

- Sobre o item 8: Como se chama o processo de pegar dados acumulados e saber para quê mais eles servem? Dataficação também! Dataficação tem dois sentidos: do problema para dados e dos dados para o problema! Em breve a Verily Life Sciences terá uma quantidade enorme de dados sobre onde, quando, e o quê os bebês fizeram nas fraldas e quanto tempo eles esperaram pela desejada troca. Pra quê servirá isso? Um especilista em dataficação no sentido dados-problema é um exímio modelador de novos negócios.

Agora é com você. Escolha um problema e projete o seu ecossistema big data!


1 Publicada na minha dissertação de mestrado (COSTA, Luciana.BIG DATA ESTRATÉGICO: UM FRAMEWORK PARA GESTÃO SISTÊMICA DO ECOSSISTEMA BIGDATA). A partir dessa pesquisa desenvolvi o WIDA (Web Intelligence & Digital Ambience), curso para tomadores de decisão data-driven. Atualmente o WIDA é uma pós graduação Lato Sensu em Big Data Estratégico sob a chancela da Coppe/UFRJ  Para saber mais sobre o curso WIDA, clique aqui.



terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Apenas uma vez: A política simples e vencedora do ‘no single piece of information should be entered twice’

A Estônia é sociedade mais digital do planeta e líder mundial em tecnologia.

Poderia dizer só isso e deixar vocês duvidarem e descobrirem sozinhos essa história, mas vou avançar um pouquinho...

Foi o primeiro país a declarar o acesso à Internet como um direito humano (2000) e também o primeiro permitir a votação on-line nas eleições gerais (2007). Tem um serviço de banda larga dos mais velozes do mundo e é recordista no número de startups por habitante. Tem armazenado em nuvem todos os registros médicos de seus cidadãos e todas as escolas estão conectadas desde 1998. Sua rede digital extrapola suas fronteiras geográficas: qualquer pessoa do mundo pode se habilitar para ter a cidadania digital e com isso abrir uma empresa no país (em alguns minutos...) e usar o seu sistema financeiro . Isso não é tudo (para saber mais acesse os links no final nesse texto), mas já deixaria qualquer outro país desenvolvido comendo poeira na estrada da digitalização, não é?

Essa história tem um detalhe que não pode deixar de ser dito: tudo isso aconteceu depois de 1991, após o colapso da União Soviética, bloco comunista do qual a Estônia fazia parte. Não é preciso muito esforço para imaginar como o país deveria estar defasado e carente no momento em que se viu livre das amarras impostas pela URSS. Tudo é história e está devidamente registrado. Então, como eles conseguiram essa virada em pouco mais de duas décadas?

Claro que a organização da economia foi fundamental para permitir um planejamento de crescimento e atrair investimentos e isso começou imediatamente (1992). Não é objeto de análise desse texto, mas faço questão de dizer que a Estônia é um dos países mais liberais do mundo!

A revolução digital começou em 1997, quando o país decidiu buscar soluções para a ampliação e uso de documentos digitais, mas sóe podemos hoje falar que a Estônia é uma plataforma digital completa, isso se deve a Taavi Kotka, CIO (Chief Information Officer) do país desde 2013 (foto).


Taavi Kotka, CIO da Estônia desde 2013
Conhecido como um ‘homem com uma visão de futuro’, Kotka vislumbrou a necessidade e a oportunidade de transformar a Estônia numa sociedade digital. Para enfrentar o desafio concebeu e implantou a política do ‘apenas uma vez’ (once only policy), que preconiza que nenhuma informação deverá ser registrada mais de uma vez (‘no single piece of information should be entered twice’).


A política é extremamente elegante porque em apenas uma frase feita de palavras simples, alcança tudo o que se espera de uma política de inovação para o século XXI, que deve ter a digitalização como alicerce principal. Vejamos por exemplo:

Sobre o custo da coleta dos dados: uma vez coletados, dados digitais podem participar de infinitos processos produtivos de conhecimento. É um recurso que não se desgasta com o uso. Porque não reduzir o esforço da coleta? Se uma informação já foi coletada, basta.

Open data: se apenas um coleta e todos devem usar, então... os dados devem ser compartilhados! Simples assim.

Governança dos dados: se todos vão usar os mesmos dados, eles precisam ter boa estrutura, integridade, disponibilidade, acessibilidade e um fácil gerenciamento. A identidade única e digital do cidadão da Estônia é a chave de busca para diversos dados de interesse da sociedade como dados de saúde, de educação, propriedade etc.

Política de uso de dados: esse recurso pertence a todos e para isso o país adotou uma política rigorosa de responsabilidade e exige de todos o seu reconhecimento e cumprimento.
Outras implicações e consequências benéficas devem estar associadas à only once policy. O que foi citado são apenas alguns exemplos.

Podemos dizer que Kotka colocou a Estônia nas nuvens! 

Até pouco tempo, sempre que me perguntavam que política pública seria fundamental na área de... (pode completar com o que você quiser), eu respondia sem pensar: uma política que incentive o livre compartilhamento de dados, ou simplesmente a cultura open data. Isso foi até o final do ano passado (2017). Hoje eu quero a política ‘no single piece of information should be entered twice’.


Para ler mais sobre a Estônia:

Estônia, uma democracia digital (em português) https://medium.com/app-civico/est%C3%B4nia-uma-democracia-digital-9e4ccc5279f6,





terça-feira, 8 de agosto de 2017

Abre-te, Sésamo! A inauguração do “universo paralelo da paz” no Oriente Médio

Bahrein, Chipre, Egito, Iran, Israel, Jordânia, Paquistão, Turquia e Autoridade Palestina (ANP). Começando assim, parece que estamos diante de mais um texto sobre desentendimento, intolerância e guerras. Mas não, esse texto não é sobre guerras.

Não me lembro mais como tomei conhecimento da existência do SESAME, nem que motivações e conexões mentais me fizeram seguir dezenas de hyperlinks na Internet para descobrir essa história incrível que compartilho aqui com vocês.

SESAME é um acrônimo para Synchrotron-light for Experimental Science and Applications in the Middle East. Não se assuste... não pare de ler ainda porque SESAME também é a palavra mágica que abre a caverna onde está escondido um inestimável tesouro! Um sincrotron é uma espécie acelerador de partículas, semelhante ao Grande Colisor de Hádrons do CERN (Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear). No CERN os cientistas fazem colidir partículas para estudar a origem das suas massas. Um sincrotron, simplesmente faz as partículas ‘dançarem’ para produzir uma luz de grande intensidade e alto brilho: a ‘luz sincrotron’. Essa luz é perfeita para a observação de objetos nanométricos, aqueles que possuem dimensões na escala atômica ou molecular, que não podem ser vistos nem mesmo com um microscópio (proteínas e vírus, por exemplo). Deve ser uma coisa incrível, né? Digo ‘deve ser’ porque, como muitos dos que estão lendo isso, meu arcabouço de conhecimento não é suficiente para apreender a importância do SESAME para a física quântica. Mas isso não tem a menor importância porque esse texto também não é sobre o avanço da ciência e esse não é o maior tesouro que o SESAME nos oferece.

O SESAME nasceu de uma ideia muito louca. A ideia era promover a cooperação entre árabes e israelenses para a ciência. Os loucos eram o israelense Eliezer Rabinovici e o italiano Sergio Fubini, ambos cientistas do CERN. Rabinovici, sabia da importância da cooperação para a ciência e se inquietava em ver que a falta de diálogo dos países do Oriente Médio (provocado por divergências religiosas, econômicas e políticas), reduzia a quase zero a sinergia potencial entre os cientistas da região. Fubini coordenava um grupo de cooperação científica para países do Oriente Médio. Em 1994 eles decidiram que estava na hora de tirar do papel o que eles chamavam de ‘universo paralelo da paz’: colocar inimigos históricos num mesmo laboratório, pesquisando e produzindo ciência.

Os dois se auto empossaram membros de um comitê científico que teve como primeira ação organizar um encontro de cientistas em Dahab, Egito, próximo ao Deserto do Sinai. O encontro discutiu missão e possibilidades, mas o plano de ação que faltava só surgiu em 1997, quando um grupo de cientistas alemães resolveu doar para o SESAME um acelerador antigo, oriundo da recém extinta Alemanha Oriental, que estava prestes a ser substituído por um mais moderno. Alguns membros do SESAME relutaram em aceitar alegando que um equipamento tão antigo não atrairia cientistas. Rabinovici foi decisivo mais uma vez, dizendo coisas mais ou menos assim: 'Claro que temos que aceitar! Precisamos rápido de algo concreto porque não vamos querer construir uma coalizão de Árabes e Israelenses em torno do ar!' Em 1999 o empreendimento recebeu o nome de SESAME, sugestão de um membro da Autoridade Palestina. Em 2000 o grupo decidiu instalar o equipamento na Jordânia: “Tinha que ser na Jordânia. Era o único lugar onde todos poderiam ir”, disse Rabinovici referindo-se ao fato de que era o único país com relações diplomáticas com todos os outros.

O SESAME ainda precisaria da autorização da UNESCO para construir um laboratório para aceleração de partículas, dados os riscos que experimentos dessa natureza oferecem. Imagine convencer a UNESCO de que cientistas do Bahrein, Chipre, Egito, Iran, Israel, Jordânia, Paquistão, Turquia e Autoridade Palestina (ANP) acelerariam partículas em paz... A aprovação da UNESCO veio em 2002. Seguiu-se a construção da planta, a montagem do equipamento e o primeiro teste veio em 2009.

Toda a história do SESAME (que inclui até sobreviver ao terremoto de 6.9 graus de magnitude que ocorreu no Egito no dia do encontro em Dahab) vale a pena ser lida, mas eu ficarei por aqui. Dou agora um grande salto para o dia 16 de maio de 2017, quando o laboratório foi totalmente concluído e aberto para os cientistas dos países membros. Infelizmente, uma notícia muito pouco divulgada. Mais triste ainda é que a pouca divulgação que recebeu fique ofuscada por tanta notícia da chamada agenda negativa, seja no mundo como um todo, seja no local onde vivemos e atuamos.

Esse não é um texto sobre guerras nem sobre avanço da ciência, é sobre a resiliência humana diante do negativo e da destruição. O ser humano está conectado pela necessidade e paixão de produzir conhecimento. O SESAME levou 20 anos para acontecer, mas aconteceu porque a rede do conhecimento desconhece os obstáculos impostos por outras redes. As religiões pregam dogmas incompatíveis que geram intolerância e a rede de conhecimento os ignora. As nações riscam no chão as fronteiras que dizem “daqui não passarás”, mas a rede de conhecimento as ignora. O mercado produtivo coloca as informações em cofres gerando alto custo de transação, mas a rede de conhecimento os ignora. As instituições de ensino pregam o erro como algo a ser evitado, colocando os humanos em desconfortáveis zonas de conforto, mas isso a rede de conhecimento também ignora.

O mundo hoje é muito melhor do já foi em qualquer tempo e até muito melhor do que imaginamos que seja. Isso se deve apenas à resiliência da rede de conhecimento que constrói e direciona valor para onde é necessário.

Vida longa ao SESAME que nesse texto foi apenas o pretexto para falar do conhecimento como o 'universo paralelo da paz'.

Eliezer Rabinovici e Sergio Fubini, larguem as partículas subatômicas dançando por aí e saiam pelo mundo contando essa história.



quinta-feira, 23 de março de 2017

A Internet das Coisas não está esperando por nada: não pisque o olho ou vai perder

"A Internet das Coisas só vai decolar se os consumidores puderem confiar nela."

A frase acima foi retirada de um texto da Delloite (gigante do ramo de consultoria, auditoria e assessoria para empresas), mas podemos dizer que ela é comum no pensamento de todos (ou quase todos) os players envolvidos nesse ecossistema de objetos conectados. 

Penso que essa é uma ideia equivocada. Não é que não seja importante ter um protocolo de segurança que minimize o risco do mau uso dos dados. Claro que isso é importante. Todo o restante do texto tem informações relevantes, considerações importantes e sugestões que devem ser consideradas. Mas isso não quer dizer que a IoT só vai decolar quando os consumidores confiarem que tudo isso já está implantado e funcionando direitinho.

Por três motivos:

1. IoT não está restrita a dados sobre pessoas. Muitos sensores conectam e coletam dados de plantações, criações de animais, equipamentos de logistica e de produção de produtos, condições climáticas etc. Coisas que não envolvem dados pessoais e estão alavancando a IoT. Os impactos do uso desses dados sim, serão para as pessoas, e geralmente são benefícios, o que colocará as pessoas a favor disso e não resistentes.  

2. A regulamentação sempre vem depois do fato consumado. Não tem como ser diferente, por definição. É impossível criar regras e protocolos para algo que não existe. A sociedade muda primeiro. As leis correm atrás.

3. Mesmo falando exclusivamente sobre dados pessoais, quando adotamos uma inovação, estamos buscando soluções que reduzam nossa "taxa de sofrimento" em algum aspecto de nossas vidas. Se o produto ou serviço de fato desempenha esse papel, aceitamos em troca abrir mão de alguma coisa. Isso costuma ser um ato consciente quando se trata de troca material: pagar por um produto ou serviço, por exemplo (eu disse consciente, não racional!). Mas quando não há "desembolso" material na troca, o grau de inconsciência é muito maior. Usamos o celular porque facilita nossa comunicação, o GPS, porque facilita nossa localização, o e-commerce e o Google, porque são extremamente convenientes. Ninguém pensa que está cedendo dados, e quando pensa, o que vem de mais racional à cabeça é a confiança nas instituições (o que, vamos combinar, é mais instinto do que racionalidade). Fomos treinados para isso. Se não confiamos nas instituições o medo nos paralisa. Todos nós conhecemos casos patológicos dessa natureza. 

Olhando agora para os fatos e os números, podemos confirmar a teoria: Não conhecemos muitas pessoas que recuaram do uso de um produto/serviço útil, pelo fato de estarem cedendo dados. Ao contrário, uma proporção cada vez maior da população está usando uma quantidade cada vez maior e diversificada de "coletores de dados". Também o número de objetos conectados cresce exponencialmente, ou seja, as empresas não estão esperando as regras e os protocolos... (embora certamente estejam preocupadas e trabalhando nisso).



Para polemizar um pouco mais essa questão, pensemos no seguinte: Já existem dados suficientes para provocar uma avalanche de soluções inovadoras em todos os setores produtivos, mas vamos especular em um onde o ser humano tem mais expectativas na redução das taxas de sofrimento: a saúde. Por coincidência ou não, esse é um setor onde é bastante fácil implantar sensores para IoT. Sabemos, por exemplo, que algumas pessoas já usam diariamente monitores no braço (fit bands) por modismo, curiosidade, necessidade de ser moderno e até porque enxergam mesmo algum valor neles. Os dados são coletados e os controladores desses dados estão colocando esforços para gerar mais valor com eles (disso não tenha nenhuma dúvida). Imagine se hoje sai a seguinte notícia no jornal: Cientistas descobrem a cura do câncer através de tratamento personalizado a partir do padrão do batimento cardíaco. Para isso são necessários dados diários dos últimos 10 anos do paciente Não se apegue na plausibilidade do exemplo, concentre-se na essência do argumento. O que você acha que vai acontecer imediatamente depois? Pessoas vão esperar as leis que garantam a privacidade no uso desses dados para depois comprarem suas fit bands? Empresas consultarão seus departamentos jurídicos e farão lobby com os legisladores para aprovar logo as regras para uso dos dados? Ou haverá uma corrida dos consumidores ao mercado em busca desses sensores, e das empresas visando oferecer o melhor produto para essas pessoas?

A Iot, vai se consolidar antes que o cidadão/consumidor possa confiar inteiramente nela.

Qual a implicação prática disso? Para os pioneiros, pouca diferença. O problema são os seguidores e retardatários, a grande maioria dos players, que podem ver nisso uma justificativa para adiar confortavelmente um planejamento estratégico que os coloque no paradigma digital. 

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Vamos ter que desapegar do controle editorial


O assunto da vez é a proliferação das notícias falsas nas redes sociais, seus efeitos negativos e como combatê-las. O problema é sério, cabem muitas discussões para diagnosticá-lo assim como podem existir muitas ideias para contorná-lo. No entanto, acredito que uma coisa precisa ficar de fora dessa discussão: o controle editorial das redes sociais.

Discordo de Bart Cammaerts (professor de mídia e comunicação na London School of Economics) que recentemente declarou que "Facebook e Twitter têm responsabilidades editoriais" (veja a matéria completa aqui). Não, não têm! O equívoco é comum e deriva do fato de se olhar para as redes sociais com o paradigma das mídias de massa. Redes sociais são outra dimensão de interação das pessoas com os acontecimentos e precisam de uma abordagem diferente da que existia para as mídias "de um para muitos".

Para entender melhor, vejamos um exemplo equivalente, que aconteceu há muitos séculos e para o qual já conhecemos os desdobramentos e o desfecho: Até o século XV poucas pessoas tinham acesso a textos escritos. Também poucos sabiam ler. A Bíblia, por exemplo, era lida por membros do clero que interpretavam e transmitiam a mensagem para outros. Após a invenção da prensa (em meados do século XV) e a massificação da alfabetização (meados do século XVIII), as pessoas passaram a ter contato direto com o texto escrito e a leitura e interpretação da Bíblia foi desintermediada. Deve ter sido um desespero abrir mão desse controle! Devem ter aparecido milhares de pessoas defendendo a ideia de que isso era ruim e maléfico à sociedade. O resto da história é conhecida. Não conheço uma só pessoa que defenda o analfabetismo ou a restrição de acesso a textos escritos, como forma de dirigir a sociedade para um destino melhor.

Estamos passando por um desafio semelhante. A internet favorece o descontrole da produção e distribuição da notícia e isso eventualmente pode gerar os efeitos que estamos vendo agora, mas vamos ter que aprender a desapegar do controle editorial. Qualquer ação nesse sentido é uma ameaça à liberdade de expressão que seria algo muito mais maléfico para a sociedade do que a publicação de informações falsas. Acreditamos e compartilhamos notícias falsas pelas redes sociais porque durante séculos fomos acostumados a consumir, sem nenhum distanciamento crítico, toda informação que nos chegava sobre os acontecimentos no mundo. Precisamos de um tempo para aprender a nos relacionar com as notícias que passaram a chegar por outras vias. Precisamos desenvolver competências e habilidades para identificar e combater notícias falsas e isso não pode ser feito de outra maneira que não seja usando a mesma topologia da rede que as criam e distribuem (descentralização, autonomia e autoridade nas pontas, redistribuição de contra-argumento). Por que deixaremos o inimigo com as melhores armas e nos contentaremos com armas menos eficazes? Seria uma guerra perdida.

A médio prazo, a sociedade vai ganhar com isso. Controle editorial de redes sociais digitais é um erro, uma falsa proteção aos valores liberais e democráticos, uma solução que só faz sentido quando se desconhece completamente a essência da internet e o papel das suas ferramentas.